Ilustração da capa: André Oide
"Se vier, venha em paz!"
Diz a placa da estrada
no rumo de Bacurau,
pois fica logo avisada
a gente que, em geral,
tem, na conduta do mal,
a intenção norteada.
É bem sério esse aviso
e quem o ignorou,
volante, gringo ou cambada
bem cedo o demo levou,
com tiro, murro, facada,
em duelo ou em cilada,
de lá nunca mais voltou.
Mas se for na humildade,
vá e não fique cabreiro,
nada vai lhe acontecer,
pois é povo hospitaleiro;
o mais que pode lhe haver
é o escárnio sofrer
de Carranca, o violeiro.
Dj Urso toca o som
e comanda a alegria,
se da farra você for,
lá tem também putaria,
só não tem padre ou pastor...
água falta, sobra amor!
logo é rica a freguesia.
Acontece que a fama
daquele povo valente
varou além do sertão,
atravessou continente,
chegou até Washintão
e gelou o coração
de um tal Mister Presidente.
O galego arrepiado
logo levantou a crista,
berrando feito animal,
puxou do bolso uma lista
e, com um gesto fatal,
decretou que Bacurau
era grupo terrorista.
Mandou zap pra Brasília
exigindo repressão
e o nosso presidente,
filho e neto de cagão,
covarde de alta patente
mais ligeiro que repente,
disse: “sim, senhor, pois não!
Telefonou para o Rio,
pro Governador da Morte,
e passou logo a missão
de enviar para o norte
o Bope num caveirão
e o famoso Capitão,
pra chegar batendo forte.
“Missão dada é já cumprida”
diz Capitão Nascimento,
matador de traficante,
policial violento,
que vive o fado constante,
sem ter paz nenhum instante
em seu trabalho sangrento.
Partiu a tropa do Bope
pelo rumo do Sertão,
mas não foi a vez primeira
que se viu tal situação:
em que a verde bandeira
se revestiu de caveira
pra beber do sangue irmão.
Sem demora a notícia
chegou logo em Bacurau,
pois havia cobertura
do maior telejornal
que, na maior caradura,
apoiou a ditadura
em cadeia nacional.
Naquela noite, na praça,
se arrumou a resistência:
Domingas e Professor
fariam a assistência
e o povo, em seu favor,
responderia o horror
na língua da violência.
Foi logo o Bope chegando
que, na beira da estrada,
encontrou sete caveiras
em estacas perfuradas,
compostas de tal maneira
pra avisar a quem queira
que era guerra declarada.
Nascimento viu aquilo
e sorriu com ironia:
“Caveira é nosso brasão
morte é nossa companhia,
é boas vindas então
para a nossa divisão,
soldados, digam bom dia!”
Antes de entrar na cidade,
sugeriu o Zero Dois:
“Capitão, bora almoçar?
a gente invade depois”
Mas ele queria entrar
e tudo logo arrasar
antes do feijão com arroz.
E foi esse o grande erro
do polícia estrategista:
subestimar o inimigo,
ter certeza da conquista
e não procurar abrigo,
olhando pro próprio umbigo,
sendo demais otimista.
Ao entrarem na cidade,
estava tudo calado;
Capitão mandou soltar
rajadas pra todo lado,
querendo esculachar
e tentando apavorar
o povo ali entocado.
Nem uma palha mexeu
e pio nenhum foi ouvido,
mas um vento atravessado
aguçou outro sentido:
um cheirinho de guisado,
com tempero caprichado,
deixou o Bope aturdido.
Seguiram atrás do cheiro,
com a boca salivando;
acharam um caldeirão
com a carne cozinhando,
mas antes de “sim” ou “não”,
deu uma baita explosão
parte da tropa arrasando.
O Capitão Nascimento,
que era filho da sorte,
pulou antes da cilada,
evitando assim a morte;
com a poeira baixada,
ficou só de orelhada,
procurando algum suporte.
O povo logo surgiu,
de cabriola e pinote:
Dona Tânia e Damiano,
Teresa junto ao Pacote;
todos já comemorando
o bom sucesso do plano,
dançando xaxado e xote!
Mas Capitão Nascimento,
com outros sobreviventes,
refez sua estratégia
e atacou de repente,
com violência sem média,
promoveu uma tragédia,
sem poupar nem inocente.
Foi o maior tiroteio
da história de Bacurau;
morreu civil e soldado,
quem não correu se deu mal;
de tanto chumbo trocado,
tanto um como outro lado
ficou sem bala ao final.
Quando se ouviu o silêncio,
o Sol já estava deitando,
que do lado do horizonte,
Lunga foi se aproximando:
com seu estilo de afronte,
chegou erguendo a fronte
e o Capitão foi chamando:
“Capitão da farda preta
acabou-se a munição?
venha ver o resultado
da tua bela missão;
veja os mortos deste lado,
nenhum aqui é soldado,
todos filhos deste chão.”
O capitão carrancudo,
com sua boina de lado,
marchou pro meio da praça,
parou de peito estufado,
olhou pra Lunga e achou graça,
dizendo em tom de chalaça:
“Esse caboclo é viado!”
“Que coisa esquisita é essa?
Esse é o bandido terrível?
É homem, mulher ou bicha?
Como pode ser possível?
pinta a unha e passa lixa,
na roupinha ela capricha,
Eita, boneca sensível!”
“Bicha pra mim é elogio,”
disse Lunga sem piscar,
“Quero ver a sua cara,
quando eu te derrubar
e a sua fama cara,
depois que eu lhe der de vara,
vai cair, sumir, minguar!”
Ficaram se encarando,
então puxaram da faca;
Lunga, num rabo de arraia,
o capitão quase mata;
começou um cai não caia,
debaixo de coro e vaia,
cada um com sua bravata:
“Sou Capitão Nascimento,
herói dos homens de bem,
eu sigo a lei do estado,
mas só quando me convém:
sento o dedo e invado,
de helicóptero ou blindado,
e meus fãs dizem amém!”
“Sou Lunga do Bacurau,
não tenho medo de nada,
não tenho nenhum patrão,
não me escondo atrás de farda!
Sou a cadela do cão,
não tenho fã, tenho irmão!
Mato e morro é na dentada!”
A briga foi esquentando,
os dois já estavam feridos,
quando o capitão sentiu
um tuim nos seus ouvidos,
junto com um calafrio,
um medo nele surgiu,
confundindo seus sentidos.
“Você é só um bandido”,
berrou alto o Capitão,
“Paraíba da sua marca
já derrubei um milhão,
mas se você se entregar,
posso até te perdoar,
aceite a negociação!”
“Já tá me pedindo arrego?
Agora que eu me esquentei?
mas se quiser desistir,
minha condição darei:
basta só admitir,
sem tugir e nem mugir,
Que perdeu pra esta gay!”
“Quem você pensa que é?
Perdeu juízo e razão?
quando eu subo na favela,
eu deixo corpos no chão;
o sangue do povo gela,
quando me vê na viela!
Perco pra viado não!”
“Você é sombra eu sou Luz,
sou Lunga queer-cangaceiro,
bem servido e bem amado,
sei bem ser puta e guerreiro!
Melhor é ser bem viado,
que ser cachorro do estado,
alma seca, sem luzeiro!”
Nesse instante, deu moléstia
no famoso capitão;
caiu tremendo e suando,
de quatro patas no chão;
o povo foi se achegando
e a doutora examinando,
pra entender a situação.
Doutora Domingas era
dona de saber titânico
e disse assim, curto e grosso,
em um tom meio mecânico:
“O mal que aflige esse moço,
lhe causando esse alvoroço,
é a síndrome do pânico.”
“Esse povo da metrópole
não vive, apenas vegeta,
seu dia é cumprir tabela,
não tem vontade, tem meta;
infeliz, se descabela,
adoece e se estatela,
sofre com a alma inquieta.”
Deram água com açúcar
pro capitão melhorar;
Lunga lhe apontou o dedo
e disse: “pode chorar,
mas se lembre que esse medo
tem o mesmíssimo enredo
que o povo tu faz penar!”
Tiraram-lhe a farda preta
e a sacudiram no mato,
mas vendo a situação,
tiveram pena do fato;
o professor veio então,
explicar pro capitão
o seu derradeiro ato:
“Seu Nascimento, esse povo
é pobre mas é real,
também é gente quem nasce
nesta humilde Bacurau;
agora que nos conhece
diga se a gente merece
toda a carga do teu mal?”
“Vá-se embora, pegue a estrada,
atacar não vamos mais;
você não é o inimigo,
mas sim aquele que o traz;
leve a mensagem contigo:
Bacurau é chão amigo,
mas só pra quem vem em paz!”
Assim acabou-se a história
do famoso capitão;
não deu as caras no Rio,
dizem que foi pro Sertão,
mas ninguém lá nunca o viu,
decerto que ele sumiu...
Pronto, acabou, tem mais não!
***
Este cordel-fanfic foi realizado sem fins lucrativos.
Viva o cinema brasileiro, a cultura popular e a liberdade de expressão! E fogo nos fascistas!
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