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  • Foto do escritorJorge De Barros

A EPOPEIA DE "OS LUSÍADAS" EM QUADRINHOS (artigo)

Atualizado: 27 de mai. de 2021

Mais que um livro e um autor, “Os Lusíadas” é um monumento e Camões, um herói. Quem seria então a “Gente ousada, mais que quantas no mundo cometeram grandes cousas” capaz de encarar a tarefa de adaptar essa obra prima para os quadrinhos?

Publicada em 1572, a obra “Os Lusíadas” é a grande epopeia da língua portuguesa, escrita aos moldes clássicos, emulando a poesia épica da antiguidade, de Homero à Virgílio. Tudo no livro é imponente e ameaçador como o Mar-Oceano: escrito por um gênio, no auge do Império Português e narra um dos maiores feitos da navegação europeia, — a descoberta, por Vasco da Gama, de um caminho para as Índias contornando a costa do continente africano. Enfim, um autor grandioso, um assunto grandioso e um povo no auge de seu desenvolvimento, tal é “Os Lusíadas” de Camões. Também é monumental a sua forma: 1102 estrofes de oito versos, totalizando 8816, todos com dez sílabas métricas e rimas regulares, com estrutura em ABABABCC.

É portanto obra fundamental, diversas vezes retomada, readaptada e mencionada pela cultura lusófona. Grandes obras literárias subiram em seus ombros, como “Mensagem” de outro gênio Fernando Pessoa e “A Invenção de Orfeu” do gênio ainda incompreendido Jorge de Lima. Também é digna de nota a adaptação de Ruth Escobar para o teatro, em 1972, com o título "A Viagem" e a retomada dessa montagem em 2001.(1)

Entrando no campo dos quadrinhos, o registro mais antigo de uma adaptação do poema camoniano para a nona arte(2), segundo o site “Guia dos Quadrinhos”, data de 1973, de autoria do mestre Pedro Anísio (criador do personagem “Judoka"), pela Editora Ebal e também com ilustrações de capa do grande Nico Rosso ("Estranho Mundo de Zé do Caixão", entre outras obras).


Como podemos ver, essa adaptação abre com um prefácio de Nico Rossi, pedindo licença e quase desculpas a Camões, com o sugestivo título de "Nosso Atrevimento", que transcrevo:


"É um atrevimento reduzir "Os Lusíadas" a uma história em quadrinhos. Mas é um atrevimento necessário. Todos estão cansados de ouvir dizer que o grande poema de Camões é de leitura dificílima e cansativa. Um tanto difícil pode ser. Afinal a epopeia foi escrita há precisamente quatrocentos anos. E um poema com a idade de quatro séculos tem, forçosamente, muita coisa estranha ao nosso tempo, a começar pela linguagem. Além disso, seu plano é grandioso. Um trabalho gigantesco que abrange muitos dos conhecimentos da época, em Ciência, História, Geografia, Astronomia, Filosofia e Mitologia. Mas é justamente pela sua monumental construção que "Os Lusíadas" são fascinantes. Mergulhamos em plena transição da sociedade e cultura humanas. Era o fim da Idade Média e o princípio do Renascimento."


Nesse prefácio, encontramos claramente o dilema da adaptação literária como "mal necessário" e sua justificativa como uma forma de apresentar os clássicos, aparentemente inacessíveis, para as novas gerações. O mais interessante, porém, é pensar em como a própria adaptação, justamente por essa sua busca de comunicar o conteúdo para o público de uma época demarcada, acaba envelhecendo muito mais rápido que a obra original. Mas isso não deve ser visto como um defeito, ao contrário: faz sentido que isso aconteça e que essas adaptações sejam produtos de suas épocas.


Já em terras portuguesas existe uma cultuada adaptação de José Ruy, publicada de forma periódica entre 1983 e 1984, pela Editorial Notícias e que teve, 25 anos depois, uma reedição comemorativa em volume único pela Editora Âncora, incluindo uma versão em língua mirandesa (dialeto falado no noroeste de Portugal). Nessa banda desenhada — que é como os lusitanos chamam os quadrinhos — o artista conteve o seu atrevimento e manteve, em parte, o texto camoniano. É realmente um trabalho impressionante, cuja reimpressão demonstra maior longevidade. Em vez da facilitação do enredo e do texto, o adaptador procurou integrar o texto camoniano aos quadrinhos, ora como recordatório, ora como balão, acrescentando asteriscos explicativos quando necessário e cortando alguns versos quando achou melhor.

Analisando rapidamente esses cortes do texto original, podemos ver um exemplo na página abaixo, no primeiro balão do segundo quadro:


Trata-se do momento da dedicatória do poema, feita ao Rei D. Sebastião, mais especificamente a estrofe 6 do Canto I:


E, vos, o bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vos, o novo temor da Maura lança,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Pêra do mundo a Deus dar parte grande;


Inicialmente é interessante destacar que o adaptador colocou reticências onde ocorreu o corte, como uma indicação para os leitores. Há algumas possibilidades para a escolha desse corte: dar mais dinamismo à leitura, pois se trata de um trecho laudatório longo; ou mesmo retirar um trecho incômodo, pois os versos falam da expansão do Império em uma nova cruzada que não ocorreu, pois D. Sebastião não cumpriu a sua "promessa"(3), além disso, exaltar essa expansão por meio de uma "guerra aos mouros" podia já ser ofensivo nos anos 80, mas seria necessário analisar outros trechos da obra e até a representação visual dos estrangeiros para fazer essa afirmação.

Também é notável a forma como José Ruy entrelaçou textos e imagens. Ele optou por libertar-se da estrutura gráfica do verso, colocando-os como texto corrido em prosa, mas sem alterar o texto em si. Isso permitiu que ele "espalhasse" as palavras livremente nos balões e recordatórios da forma como achou melhor. Interessante também perceber que as notas explicativas aparecem em balões amarelos, ficando assim separadas do texto original. É uma saída bastante criativa, bem melhor do que colocar um monte de notas de rodapé.

Por fim, também conseguimos perceber uma influência de Will Eisner no uso dos cenários e balões como requadros e sarjetas, fazendo com que cada página se torne um interessante exercício de composição e recriação na linguagem própria dos quadrinhos.


Chegando ao Século XXI, tivemos duas adaptações bem diferentes entre si, mas que buscaram, cada uma a seu modo, modernizar a epopeia camoniana, ambas curiosamente lançadas em 2006. Vejamos inicialmente "Lusíadas 2500" de Lailson de Holanda Cavalcanti, publicado pela Companhia Editora Nacional em um projeto ousado de transformar a aventura de Vasco da Gama em uma "Space Opera". Infelizmente o "atrevimento" de Lailson não teve pernas para se concretizar, pois não passou do primeiro volume, com a adaptação dos quatro primeiros cantos de "Os Lusíadas", ficando assim como uma obra inacabada.

Transformar uma história de navegação em uma narrativa espacial é um recurso bastante interessante, que permite redimensionar a ideia de perigo e de desconhecido. De fato, os nossos astronautas e agências espaciais são o que mais se parece atualmente com os antigos navegadores e companhias de navegação. O recurso também já foi utilizado pela Disney em 2003, com "O Planeta do Tesouro", adaptação de "A Ilha do Tesouro" de Stevenson, mas o filme foi tão mal de bilheteria que o estúdio decidiu abandonar, naquele momento, as animações tradicionais. A ideia parecia boa, mas em vez de "decolar", "afundou" (ok, péssimo trocadilho).

A HQ "Lusíadas 2500" é a única que resolveu manter a integridade do texto original e, para economizar espaço nos recordatórios, utilizou a barra ( / ) para separar versos. Nisso ele não foi tão "atrevido" e isso talvez seja o maior defeito dessa adaptação: foi ousada no conteúdo, mas conservadora na forma.

A obediência ao texto de Camões prejudica o ritmo da narrativa, pois como não ocorreram os cortes ou estilizações da linguagem como fez José Ruy, há estrofes que não conversam com os desenhos e páginas que estão ali para servir de suporte ao texto, estendendo a narrativa visual para além do necessário. Posso estar enganado, mas isso pode ter prejudicado até a arte, pois há páginas incríveis mostrando cenários de templos e cidades espaciais e outras que parecem ter sido feitas apenas para servir de suporte ao texto.(4)

Enfim, a HQ em grande parte apenas ilustra com cenários espaciais a narrativa renascentista, mas não apresenta uma outra cosmologia, um outro mundo, embora ensaie fazer isso em dois momentos, nas primeiras páginas e no início do Canto III, quando somos apresentados a um esboço de narrativa moldura, quando o Almirante Vasco da Gama conversa com o androide Registrador KMOS1572, uma representação robótica de Camões, mas é só. O forte cristianismo da época de Camões se mantém aqui, e esse espírito de cruzada associado a um futuro tecnológico soa bastante estranho sem a criação de outro contexto. Também estão presentes os deuses do Olimpo, o elemento pagão de "Os Lusíadas", mas perde-se a oportunidade de explicá-los, por exemplo, como entidades espaciais — como ocorre em alguns episódios da série "Star Trek".


Por último, temos a adaptação feita por Fido Nesti junto à editora Peirópolis também em 2006, e que possivelmente foi a mais "atrevida", no bom sentido da palavra.

O primeiro elemento a chamar atenção é o desenho despojado e cartunesco do artista: é a primeira obra que apela para um estilo farsesco e mais infanto-juvenil, já que as adaptações anteriores apostaram em uma narrativa visual épica. A escolha é acertada, pois o público alvo é o dos adolescentes em idade escolar, cujo repertório audiovisual é composto por videogames, Cartum Network, Pixar e animes.

Dentro desse espírito, a edição também aposta em uma adaptação apenas dos episódios mais importantes da epopeia: Inês de Castro, Velho do Restelo, Gigante Adamastor, e Ilha dos Amores, divididos exatamente com esses títulos, e com uma introdução e fechamento do próprio personagem Camões, que aparece como um mestre de cerimônias das narrativas.

O texto original de Camões também é mantido em grande parte e, embora não haja notas de rodapé ou balões explicativos como em José Ruy, o desenho busca contextualizar bem o que é dito. Claro que, ao selecionar os trechos mais significativos da obra, isso fica um pouco mais facilitado.

Essa adaptação de certa forma concentrou as virtudes das anteriores: há uma busca por uma linguagem mais concentrada e contemporânea como em Nico Rossi e Pedro Anísio; a mesma integração entre forma e conteúdo, com o uso criativo dos recursos dos quadrinhos, como em José Ruy e uma narrativa moldura como em Lailson Cavalcanti; tudo isso com a originalidade e humor do traço de Fido Nesti. Destaque para a originalidade como ele recriou o episódio do Gigante Adamastor.



Mas apesar de tantas virtudes, a HQ da Peirópolis não parece ter uma existência para além da sala de aula: é um paradidático por excelência, funciona muito bem caso o contexto e demais questões da obra sejam trabalhados por um professor de literatura ou história, pois faltam elementos importantes como a disputa entre Vênus e Baco e todo o contexto da expansão marítima, e até a própria chegada a Calicute não é narrada. Talvez com mais páginas isso fosse resolvido, mas sempre há uma série de riscos editoriais e a HQ poderia perder a leveza que consegue transmitir.

Por fim, como essa história obviamente não acaba aqui, está em desenvolvimento uma adaptação exclusivamente do episódio de Inês de Castro, com roteiro da historiadora Libânia Molina de Souza e arte do mestre Marcatti (5). Não é uma adaptação de "Os Lusíadas" e sim uma releitura histórica da tragédia de Inês, porém não é possível escapar do documento histórico de Camões como referência. Como o grande Mar-Oceano, "Os Lusíadas" e suas histórias continuam a desafiar adaptações e releituras em todas as linguagens possíveis.




2 - É provável que haja adaptações anteriores, mas não tive meios para aprofundar isso.

3 - O jovem rei, em que se colocava tanta esperança e por quem havia até um certo fanatismo, desapareceu nas areias do deserto do Saara na batalha de Alcácer Quibir e não deixou herdeiros, o que levou Portugal a ser anexado à Espanha no período que ficou conhecido como "União Ibérica".

4 - Mais imagens no site do Lailson http://www.lailson.com.br/lusiadas.html

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