“Triste Fim de Policarpo Quaresma” de Lima Barreto é um daqueles clássicos incontornáveis da nossa literatura. A obra, publicada no ano de 1911 como folhetim e, em 1915, no formato livro, conta a história de um patriota exagerado, quase caricatural, em suas ações e projetos para comprovar a todos que o Brasil é o maior de todos os países. Entretanto, Policarpo não carrega a arrogância ignorante dos nacionalismos mais recentes, pois ele age por um impulso legítimo de amor à pátria e a seus concidadãos. Policarpo é o nosso D. Quixote, pois guarda uma excelência e uma beleza nas atitudes, porém não consegue se mover neste ambiente onde predominam a corrupção, o compadrio, a preguiça e a opressão. De quebra, o livro também conta o drama de Ismênia, uma vizinha de Policarpo, menina talhada para o casamento, mas que não vê mais motivos para viver quando essa opção lhe é tirada. Policarpo e Ismênia formam assim uma “díade” da desilusão: ele vítima da mentira romântica do patriotismo e ela da realização pelo casamento.
Enfim, trata-se de uma obra paradigmática para a compreensão do nosso país, tanto que vira e mexe é revisitada e recontada em outras mídias. Já teve uma adaptação para o cinema: “Policarpo Quaresma: Herói do Brasil” (1998, Paulo Thiago), uma excelente adaptação para o teatro, por Antunes Filho (2011) e uma adaptação para livro infantil feita por Luiz Galdino e Daniel Araujo (2010), pelas edições Paulinas.
Paulo José como Policarpo Quaresma em filme de Paulo Thiago, 1998
Lee Thalor como Policarpo Quaresma na peça de Antunes Filho – 2011
Livro infantil, adaptação de Luiz Galdino e Daniel Araujo – 2010
Quanto aos quadrinhos, Policarpo parece ser uma das obras mais adaptadas, provavelmente por ser uma das mais requisitadas em vestibulares e por professores de literatura no Ensino Médio. Muitas vezes essas adaptações são alternativas para que os alunos entrem em contato com essa obra do séc. XIX a qual, principalmente por sua linguagem e ritmo, costuma ser difícil para leitores menos avançados.
Há toda uma discussão sobre a validade do uso didático de adaptações literárias para os quadrinhos. Sem entrar nessa seara, quero apenas apresentar essas obras e, no final, sugerir algumas utilizações didáticas.
Recentemente tivemos quatro adaptações da obra para os quadrinhos, lançadas, respectivamente, em 2004[1] (Editora Escala), duas em 2008 (Editoras Companhia Editora Nacional e Ática) e 2010 (Editora Desiderata). Todas elas são possíveis de encontrar e comprar na internet.
Vamos a elas:
O Triste Fim de Policarpo Quaresma
Coleção – Literatura Brasileira em Quadrinhos
Escala Educacional
Ano de publicação: 2004
Roteiro e adaptação: Ronaldo Antonelli
Ilustrações: Francisco Vilachã
Cores: Fernando A. A. Rodrigues
64 páginas
A obra começa com uma mensagem dos editores, um texto curto alertando para o fato de que alguns trechos do livro foram adaptados para a linguagem dos quadrinhos e que esta linguagem não substitui a leitura original. É um texto padrão que encontramos em muitas adaptações.
Dessa forma o livro cumpre o que promete: é uma boa adaptação. O desenho é bem competente, mas fica a impressão de que o acabamento e as cores poderiam ser mais trabalhados. Creio que, se a edição fosse em preto-e-branco, ficaria mais interessante, mas o apelo infanto-juvenil desse tipo de publicação deve ter impedido essa escolha. As cores não se decidem entre um sépia que procura emular algo antigo e um colorido apagado; a paleta de cores é confusa, pouco significativa para o conteúdo narrado, embora com uma ou outra tentativa disso. Fiquei com a sensação de que a cor não deu certo.
A capa segue um padrão da coleção: trechos da arte interna reorganizados como uma grade de imagens. Particularmente acho que não é a melhor escolha, pois creio que os artistas de quadrinhos devem ter a oportunidade de se expressar em uma arte de capa. Mas não é feia. Das quatro adaptações que analiso aqui, é também a menor e a mais simples, com encadernação em grampos, enquanto as demais possuem lombada quadrada.
Quanto ao conteúdo, não ocorre a divisão em três partes como no livro, mas o final aberto é respeitado. A narrativa busca, de fato, quadrinizar todos os pontos importantes e essenciais da obra literária, mas a ênfase na palavra acaba diminuindo o espaço do desenho e escondendo o bom trabalho de reconstituição de cenários e figurinos. O narrador onisciente aparece nos letreiros que explicam as ações, recurso bastante utilizado em adaptações de literatura, por ser prático, embora pouco original.
A linguagem foi adaptada para uma forma mais contemporânea, com vocabulário mais simples e sem a utilização das formas verbais e de tratamento em segunda pessoa que estão presentes no original, o que facilita bastante a leitura. Mas algumas expressões da época e o registro da fala popular de alguns personagens foram mantidos. É uma boa adaptação no sentido estrito da palavra. Há uma versão do professor, provavelmente com sugestões de atividades, mas não consegui encontrá-la.
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Coleção – Quadrinhos Nacional
Companhia editora nacional
Adaptação: Lailson de Holanda Cavalcanti
Ano de publicação: 2008
72 páginas
Nessa adaptação, o desenhista optou por um estilo mais “cartum”, assim os personagens se assemelham muito ao estilo dos desenhos animados. Isso confere uma força na expressão dos seus gestos e sentimentos e funciona muito bem.
Há um bom trabalho de reconstituição de cenários e figurinos e as cores casam bem com o estilo mais infantil escolhido pelos autores. Isso é um recurso comum em muitas obras literárias adaptadas para quadrinhos: a facilitação da linguagem costuma acompanhar uma infantilização dos personagens, mesmo em obras de teor mais realistas como esta.
É a única das adaptações que manteve a epígrafe de Ernest Renan[2], presente no original, e que serve como importante chave de interpretação da obra, pois relaciona o ideal e o real, afirmando que os “homens superiores”, os que possuem ideais brilhantes, frequentemente se dão mal em um mundo mesquinho, como acontece com o idealista do Policarpo.
Ao longo da narrativa, conforme os personagens mais importantes vão surgindo, o artista optou por reproduzir os trechos de apresentação do original, quase como uma “cartela”, mas faz isso rapidamente, escolhendo bem os trechos citados, o que não atrapalha a fluidez da leitura.
Outro recurso interessante foi colocar, logo no início da obra, um quadro com todos os personagens e uma legenda com seus nomes. Trata-se de um recurso didático capaz de auxiliar leitores menos atentos, que podem voltar a essa página para identificar os personagens conforme eles surgem ou reaparecem na trama.
O que incomoda um pouco é o tipo de fonte utilizada nos balões: optou-se por uma fonte serifada, aparentemente emulando um estilo mais “antigo” ou “literário”, mas que não combina com os desenhos leves e cartunescos do álbum. Parece querer reforçar a ideia de que esses personagens falam “de uma maneira antiga”, mas não funciona.
Assim como a edição da Escala, esta, da Companhia Editora Nacional, é uma adaptação no estrito sentido do termo, entretanto o ritmo da narrativa é mais cadenciado e a edição traz alguns textos extras como uma biografia de Lima Barreto, um ótimo texto do artista Lailson de Holanda Cavalcanti sobre a própria adaptação e suas dificuldades, uma biografia do artista e um glossário, pois o texto original, em vários trechos, foi mantido, com a linguagem e o vocabulário originais do século XIX.
Uma interessante observação do próprio Lailson é com relação aos olhos do personagem principal. Os óculos de policarpo não permitem que se vejam seus olhos e nem refletem o mundo, o que se assemelha muito aos olhos de um cego. Só em momentos de rara lucidez de Policarpo é que conseguimos ver a representação de seus olhos. Esse recurso extrapola a simples adaptação, pois produz um comentário visual e interpretativo sobre a personagem e suas ações[3].
Por fim, assim como a adaptação da Escala, respeita-se o final aberto da obra original e a capa também utiliza o recurso pobre de reproduzir cenas da arte interna e consegue ser a mais feia de todas. Uma pena, pois a edição merecia uma capa bem melhor e o artista tinha todas as condições de produzi-la se lhe fosse permitido.
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Cesar Lobo – roteiro e desenhos
Luiz Antonio Aguiar – adaptação e roteiro
Editora Ática
2ª edição: 2008
80 páginas
A obra também começa com aquele velho texto explicativo de editor. Esse tipo de obra muitas vezes exagera no didatismo. Mas é rápido e curto (ainda bem), e de cara chama atenção um recurso muito criativo dos artistas: em vez de simplesmente colocar as falas do narrador em letreiros, traz um papagaio como narrador e apresentador de toda a história.
Não há nenhum papagaio no livro de Lima Barreto, mas é de se aplaudir a iniciativa dos artistas, tanto pela criatividade do recurso, que não foge à essência da obra, já que o papagaio é um símbolo nacional (Alô, Zé Carioca!), quanto por criar uma interessante intertextualidade com outra obra paradigmática para a (des)construção do nacional: Macunaíma de Mário de Andrade, cujo enredo também foi guardado por um papagaio-narrador. Definitivamente, um gol de placa.
Não tenho muito o que falar da arte, basta olhar a belíssima capa de Cesar Lobo, mas destaca-se a habilidade de quadrinização do artista, o que entendo aqui como a capacidade de casar os recursos típicos do quadrinho, como os quadros e os balões, em um ritmo que mantenha uma coerência com a narrativa geral, buscando tirar os melhores efeitos desses recursos.
No fim do livro, na parte “Segredos da adaptação”, os autores nos dão uma aula de como utilizar cores e referências de forma criativa, inclusive, o leitor atento poderá perceber os cabelos de Quaresma ficando cada vez mais brancos e seus gestos cada vez mais desesperados no decorrer na narrativa.
Outro destaque é a forma como homenagearam o próprio Lima Barreto, que divide com Policarpo o fato de também ter sido interno de um manicômio. O livro assim permite essa rápida imersão na biografia do autor, um dos mais injustiçados pela crítica da época. Mas nada se compara, em criatividade, à forma visual como os artistas relacionaram o episódio das formigas que destroem a lavoura com a política de Floriano Peixoto e demais figuras totalitárias. Aqui, mais uma vez, lembramos de Macunaíma e seu resumo dos nossos problemas nacionais: “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são”.
O final, entretanto, mostra-se diferente da obra original, pois não é aberto e opta por mostrar o Policarpo como uma espécie de símbolo: enquanto ele é fuzilado, sua figura é representada com um cocar imaginário e seu corpo iniciando uma ascensão, enquanto, atrás dele, vemos uma representação de várias manifestações populares e históricas, como se essas fossem alimentadas pelo espírito de Quaresma. Lemos dizeres como: “abaixo a ditatura”; “diretas já”; “fora FMI”, etc. Trata-se de uma leitura e uma interpretação da obra bem ao estilo de Policarpo, pois não é absurdo dizer que aqueles que lutam por um país melhor sejam herdeiros do sonho de Quaresma. Todavia há que se destacar que esse otimismo não está presente no desamparado final da obra de Lima Barreto.
Claro que isso não é um problema e sequer desqualifica a HQ, justamente porque se trata de uma adaptação crítica, que além de apresentar a narrativa do patriota teimoso, dialoga com nossa história e expande os sentidos do livro. Junto com a peça de Antunes Filho, talvez essa seja a melhor adaptação do livro para outra mídia e, em certos momentos, chega a lembrar elementos da peça, como quando Policarpo se mune de apetrechos e quinquilharias exagerados para combater as pragas do sítio.
Mas a última adaptação que analisaremos, não fica atrás em qualidade.
Triste Fim de Policarpo Quaresma
Coleção – “Grandes Clássicos em Graphic Novel”
Edgar Vasques - ilustrações
Flávio Braga - roteiro
Editora Desiderata
Ano de publicação: 2010
71 páginas.
Após o inescapável e obrigatório texto explicativo inicial, encontramos aqui o livro com o roteiro mais enxuto e a arte mais bonita: um belo trabalho a aquarela de Edgar Vasques. As cores são sóbrias e bem colocadas, as expressões dos personagens e sua caracterização são impecáveis, e a economia do texto deixa os desenhos terem o destaque que merecem.
Com relação ao roteiro, são pouquíssimas as inserções do narrador, e as próprias imagens narram, como no cinema, quase sem a interferência do recordatório, e este, quando aparece, faz apenas observações pontuais como “No dia seguinte, Quaresma foi almoçar na casa de Albernaz”. Apenas no final, esse narrador aparece para esclarecer os motivos da prisão e condenação de Policarpo.
Tanto o roteiro como arte, dessa forma, são bem mais sintéticos e elegantes. Entretanto essa síntese levou ao corte de alguns episódios que os fãs da obra original podem sentir falta, como por exemplo o do “Tangolomango” e o da “Política do Tenente Dutra”, mas nada que subverta a essência da obra. Tais cortes podem advir tanto de uma escolha de estilo, em busca de determinado ritmo narrativo, quanto de determinação de limites de páginas por parte da editora.
Assim como a adaptação da editora ática, temos aqui uma verdadeira releitura crítica da obra, embora em tons mais sóbrios, menos carnavalescos, que a feita por Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar. Inclusive, o final e as capas dessas duas adaptações, quando comparadas, permitem-nos perceber dois discursos divergentes, o que, no final das contas, só revela a grandeza da obra de Lima Barreto em sua variedade de significação.
Nelas observamos a seguinte oposição: Lobo e Aguilar escolheram um Policarpo fanático, de olhos arregalados, adereços indígenas e papagaio no ombro, enquanto Vasques e Braga nos apresentam um Policarpo mártir, envolto na bandeira do Brasil e segurando o livro “A Origem das Espécies” de Charles Darwin, enquanto lhe apontam uma carabina. Um é loucura o outro é razão.
Com relação aos finais, aqui vemos, no último quadrinho, Policarpo baleado em movimento de queda. Embora opte pela mesma versão da dupla Lobo-Aguiar, com o fuzilamento do protagonista no final, o sentido é oposto: lá o espírito de Quaresma vive nas manifestações populares por liberdade e justiça, aqui, ele morre sozinho e injustiçado, com o seguinte “epitáfio”: “Policarpo Quaresma pereceu diante de um pelotão de fuzilamento, num alvorecer de céu plúmbeo”. Efetivamente mais pessimista e mais próximo do original.
Sobre isso, Lima Barreto optou por não mostrar o provável fuzilamento do personagem, e eu costumo dizer a meus alunos que o seu “Triste Fim” não é exatamente a morte. Se ele tivesse morrido em batalha, com a bandeira no peito, iludido, mas acreditando que morria pela pátria, estaria morrendo realizado – que morte mais gloriosa para um patriota? Acontece que o discurso final de Policarpo na cadeia, denotando um último momento de lucidez frente à morte de todos os seus sonhos, é que deve ser entendido como seu “Triste Fim”. É ali que Lima Barreto promove o corte da trajetória do seu protagonista, pois mesmo que ele fosse libertado, jamais tornaria a ser o mesmo homem. Assim, parece que o final proposto por Vasques e Braga combina mais com o espírito do livro, mas não há como recusar o final de Lobo e Aguilar como uma interpretação geral da obra, pois a loucura de Policarpo é aquela que, mesmo esdrúxula, é capaz de manter a chama acesa das utopias.
Propostas de atividades didáticas.
Comparação
Uma atividade básica quando se trabalha com adaptações é simplesmente pedir uma comparação entre a obra original e a adaptação. A quantidade de adaptações de “Triste Fim de Policarpo Quaresma” permite formar diferentes grupos de trabalho em que, cada um, analise uma adaptação diferente, incluindo o filme se possível. Pode-se mesmo cruzar comparações ou pedir que se compare mais de uma adaptação, como por exemplo uma das HQ’s, o filme e o livro.
Qual Policarpo?
Pode ser interessante pedir que os alunos comparem a descrição do Policarpo feita no livro com as diferentes adaptações. Inclusive, é possível fazer isso com os outros personagens, alguns deles como o Ricardo Coração dos Outros variam bastante de uma adaptação a outra. Junto com o professor de artes e, dependendo no ciclo, pode-se pedir que eles mesmos façam uma representação do protagonista.
Finais e Capas
Os finais e as capas das adaptações da Editora Ática e da Desiderata são um ótimo material para se debater o sentido da obra e a presença de leituras e interpretações possíveis, embora díspares, de uma grande obra. Isso obrigará a turma a voltar ao texto original e a turma pode ser estimulada a realizar debates a respeito do sentido da história do Policarpo: louco sagrado ou mártir da razão? O que cada uma dessas interpretações ganha ou perde?
Jorge de Barros 31/12/2019
NOTAS:
1] Segundo o site “Guia dos Quadrinhos”, minha edição é de 2008
[2]“O grande inconveniente da vida real, e o que a torna insuportável ao homem superior, é que, se transferirmos para ela os princípios do ideal, as qualidades tornam-se defeitos, de tal forma que, muitas vezes, o homem pleno tem menos sucesso do que aquele que é movido pelo egoísmo ou pela rotina vulgar”
[3] Alguns estudiosos de quadrinhos chamam esse tipo de recriação gráfica de conteúdos e efeitos literários de “tradução”, refiro-me aqui ao trabalho realizado pelo grupo de pesquisadores do projeto “Figuras de Linguagem: a retórica da imagem na literatura clássica” ou “Os clássicos em quadrinho”. Mais informações no livro “Pescando imagens com rede textual – HQ como tradução” de Andreia Guerini e Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (orgs) da Editora Peirópolis.
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